quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Texto Marcio Harum - Curador do Centro Cultural São Paulo/SP, sobre a exposição Dentro da Mata

DENTRO DA MATA
MIGUEL PENHA NA TEMPORADA DE PROJETOS 2014 DO PAÇO DAS ARTES

Com nove pinturas, a exposição Dentro da Mata de Miguel Penha (Cuiabá/MT, 1961), apresenta a vegetação da região do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães no Mato Grosso, no centro-oeste brasileiro, como o tema central de sua produção. Filho de índio (pai xiquitano da fronteira da Bolívia, e mãe bororo com português), o artista que resgata valiosas lembranças, por vezes, faz remeter as andançasque realizou com seu pai pelas matas durante os anos de infância, para caçar e coletar frutos do cerrado, plantas e ervas medicinais de uso tradicional.

Diante da destruição que o bioma vem sofrendo, Penha nos impulsiona de maneira ampla a uma reflexão ao que vem acontecendo principalmente no norte e centro-oeste do país, aonde plantações sem fim de soja e algodão tomam o lugar de florestas nativas.  Diletante dos estudos botânicos clássicos, mas com forte conhecimento ancestral, Penha vai observando e registrando em seu trabalho o conjunto de ecossistemas em rápida descaracterização do entorno. O artista indaga e problematiza o que está por trás da agressividade da expansão da hecatombe agrária em escala internacional em curso no Brasil,ao simplesmente propor pintar o impacto visual da beleza natural e das espécies da flora em extinção, retratando “hiperrealisticamente” a paisagem selvagem em luta por sua própria preservação.

Figuram em seu desejo de presença ambiental constante a palmeira Paxiuba, bastante utilizada pelos seringueiros e indígenas para a construção do assoalho rudimentar das casas e palafitas da Amazônia, o pequizeiro do cerrado(Caryocarbrasiliense),espécie tombada (Decreto nº 14.783/93) como patrimônio, sendo seus frutos muitíssimo consumidos pelos indígenas do Alto Xingu, a palmeira Bacaba, manuseada para a nutriçãoe o feitio de sucos e o ubim, que é aquela palmeirinha usada também pelos seringueiros e indígenas para se fechar a cobertura do telhado de suas habitações.  Quando o artista pinta a óleo, se envolve com os modos de manipulação da cera da carnaúba e os secantes em pó, que dão forte destaque as colorações. O óleo que é retirado da tinta não realça muito o brilho, assim o que resta é uma pintura mais seca, em que as cores são suavemente destacadas em seu aspecto essencial. Como sua pintura é calcada na luz natural do centro-oeste brasileiro, Penha trata a luz como a vê ao natural; ou seja, nunca artificialmente: a canaliza para a tela tal qual enxerga o raio de sol iluminandoa mata. Suas pinceladas vem mudado ao longo dos últimos tempos. E as cores também. Atualmente se vale de doze cores a óleo e quatro em acrílica. Os resultados vem aparecendo devido a essas experimentações. Almeja poder trabalhar a luz sem mais usar o branco, somente iluminando a pintura com a superposição de cores. A iluminação pela cor.

Outra localidade inspiradora para as suas telas é a reserva do povo Krahô, às margens do Rio Brilhante, que surge ocasionada por uma sensível memória fotográfica de igarapés e riachos de águas límpidas.Em sua busca incessante pelo aprimoramento da imagem, inova seus conhecimentos de química com pigmentos tecnológicos, que evoluem para testes técnicos de durabilidade e conservaçãocom novos materiais. Não obstante, o trabalho assim passa a sofrer cada vez mais frequentes mudanças positivas.

Penha se preocupa muitíssimo com as  questões de politica ambiental. O isolamento, a distância e o transporte caríssimo, ao qual estamos sujeitos para locomovermos pelas regiões do país, são os efeitos colaterais que mais vão se tornando rapidamente passíveis de gerar o apagamento de narrativas culturais regionais.  A crescente ameaça de devastação a que estão expostos tanto o patrimônio natural quanto o cultural, não apenas pelas causas tradicionais da degradação agropecuária, mas também pelas exigências da vida política, social e econômica do Brasil mais recentemente, molestam áreas imensas com desastrosos fenômenos ainda mais temíveis. Apesar da predominância da agenda das questões econômicas sobre as culturais citadania importante conquista da Carta da Rio 92, no princípio 23, consta: “o meio ambiente e os recursos naturais dos povos submetidos à opressão, dominação e ocupação deverão ser protegidos”.

O estranhamento é a ausência dos bichos e caboclos por entre as picadas do mato de seus quadros. Não aparecem, estão escondidos. Penha sabe que necessita continuar vivendo ali e pintando o ao redor, para ver aonde o seu trabalho consegue chegar em relação aos grandes formatos das telas de até 3 X 6m que vem experimentando, ampliando, “superdimensionando”, montadas sem bastidores, direto sobre lonas de caminhão.

O verde da natureza, sua massa, sombra, volume e textura das folhas e da casca das árvores é o que de fato parece estruturar o pensamento visual do artista, e faz dele a sua história real.


Marcio Harum é curador de artes visuais do Centro Cultural São Paulo.